Durante uma briga com meu irmão caçula ouvi de minha mãe: "Pare de brigar com ele. Ele não tem culpa se você não é homem". E a realidade bateu à minha porta. Foi o dia em que eu entendi que ser diferente não era normal. E que talvez eu, de fato, não fosse quem gostaria de ser.A partir de então, todas as noites eu ia para a cama me questionando se queria ser meu irmão. Ou se queria ser homem. Só encontrei a resposta no dia 12 de dezembro de 1983, quando beijei minha melhor amiga na boca. Não, eu não queria ser homem. Queria apenas poder amar outras mulheres e demonstrar meu amor fisicamente. Mas isso parecia impossível num mundo no qual a cartilha moral nos manda casar e, na seqüência, ter, de preferência, um casal de filhos.
Se, além disso, conseguirmos colocar dois carros na garagem e um cachorrinho na sala, bingo, tudo o que esperavam de nossa jornada terá sido devidamente conquistado. E, aos olhos do mundo, seremos felizes. Mas minha existência, desde muito cedo, não seguiu nenhum manual já criado. Com o tempo descobri que a vida, felizmente, não é previsível como um filme da Disney. Crescemos, mas levamos com a gente todos os traumas da infância.Viramos adultos, por mais bem resolvidos, cheios de dores e feridas. Passamos a vida em busca de repetir às sensações da adolescência, quando as amizades eram descompromissadas , as baladas não tinham hora para acabar, e os amores, arrebatadores.
Quando os cortes mais profundos podiam ser sentidos na carne, sem pressa de cicatrizar. Quando dormir depois da Sessão da Tarde era aceitável. Solidão de sábado à tarde. Olho em volta e vejo meus amigos aos 30 e poucos. As paixões verdadeiras e arrebatadoras são raras, e, quando vêm, vêm cheias de complexos e desencontros. Solidão de sábado à tarde. Tentamos lamber as feridas para que elas não sangrem aos olhos alheios. Esperam muito de todas nós: é preciso ser forte, elegante, bonita, bem-sucedida, casada, ter filhos, cuidar da casa. É preciso que sejamos várias em uma só, e falhar em alguma dessas tarefas pode comprometer todas as outras.
O diabo é que já provamos que somos capazes da multiplicidade, mas estamos chegando à conclusão de que não queremos passar a vida sapateando entre o cabeleireiro, a escola do filho, a reunião de trabalho e a satisfação sexual do companheiro. Queremos apenas ter o direito de sangrar no nosso canto, sem audiência, sem platéia, quando a dor bater forte. Queremos nos apaixonar e poder tirar férias para curtir a paixão, ou a dor da separação.
Queremos apresentar um projeto de lei que permita aos apaixonados e aos recém-abandonados não trabalhar por seis meses, ou mais. Queremos entender que a felicidade não é o destino, mas a viagem. Que ela se encontra na mesa de um bar qualquer, num fim de tarde qualquer, jogando conversa fora com amigos sinceros. Que mora no abraço apertado de um sobrinho, em uma rede que balança compassadamente na varanda de um apartamento no coração da maior cidade do Brasil ao cair da noite, no beijo da pessoa amada, num fim de semana na praia com amigos antigos.
Que a felicidade é saber, finalmente, quem somos e o que queremos fazer aqui. E que buscar nossas verdades individuais, por mais distantes que elas estejam, é o grande barato dessa jornada. Que existe um tipo de felicidade nas brigas, cheias de mágoa e de dor, com quem amamos. Que é possível crescer no sofrimento. Que por vezes a vida vai ficar tão cinza e sem graça que a vontade de desistir vai nos sufocar. E que, nesses dias, sonhar não será possível. Mas que todos passam por momentos de desespero. E que a felicidade será resgatada em novos sonhos. Por que não nos deixam cair? Olho em volta e vejo meus amigos crescidos, mas andando de mãos dadas com as crianças que foram.
Gostaríamos de ter aquele adulto de segurança na nossa cola, aquele que vai, todo curvado e atento. Uma simples ameaça de tropeço, e a mão está pronta para o resgate. A partir daí, para sempre precisaremos saber que seremos amparados a cada tropeço. E essa infernal necessidade de segurança aniquila nossa liberdade. Por que não nos deixam cair? Somos, antes de mais nada, animais livres, e a liberdade é, para cada um de nós, mais visceral do que a segurança. Ou deveria ser. Porque a vida é feita de levantar, lamber a ferida e seguir. Não estaria a felicidade na coragem de trocar segurança por liberdade? Na ousadia de abrir mão de convenções e detritos morais pelo que queremos ser e viver de verdade? Em um simples beijo, roubado em um domingo de manhã, da mulher que se ama na mesa da padaria? Em receber, no meio de uma reunião chata, uma mensagem pelo celular com apenas três palavras que vão nos fazer sorrir?
Felicidade é dançar sozinha na sala sem ninguém por testemunha, sem motivo aparente. É pedir demissão quando o tesão acabar, mesmo sem ter outro emprego. É fracassar e não ter vergonha de admitir, simplesmente porque não existe quem nunca tenha fracassado. É saber que somos fracos e pequenos, e, ao mesmo tempo, fortes e gigantes. Que somos biologicamente idênticos, e por isso não existe entre nós os que são melhores e os que são piores. Mas também saber que somos absolutamente diferentes uns dos outros. E que a beleza está nesses pequenos espaços que nos distinguem, e não no que temos em comum.
Felicidade é se deixar levar pelo coração e fazer com que a cabeça seja subordinada a ele, e não o contrário. É não se prender à tradição, é questionar a moral do mundo, um mundo cujos valores são tão tortos que é capaz de limitar e punir o amor, mas não a guerra.Felicidade é entender que andamos todos pela rua, numa segunda-feira qualquer, machucados, feridos, torturados. Que somos bichos cheios de traumas. Que cada um de nós possui um segredo mais dolorido que o outro. Mas que não existe vida sem dor. Pelo menos não o tipo que valha a pena ser vivida.Felicidade é olhar no espelho e ver nosso rosto envelhecer. Com todas as marcas que nele cabem. E entender que envelhecer é a única opção agradável. Porque a outra, convenhamos, me parece bem pior.
Milly Lacombe
Nenhum comentário:
Postar um comentário